sexta-feira, 13 de julho de 2012

Motivações

Chegará um momento em que nós não conseguiremos realizar mais nada, apenas
sobreviver por algum tempo – por minutos, por dias, por anos ou até por décadas. Mas,
durante esse tempo, poderemos apenas sobreviver, apenas respirar e manter nosso
corpo funcionando; com alguma sorte, poderemos lembrar do que construímos e do que
destruímos. Mas, além de meramente sobreviver por um intervalo incerto de tempo, não
realizaremos mais nada: não alcançaremos mais nenhum objetivo conceitual.
Após esse tempo, em algum momento displicente, geralmente imprevisível, nossa
sobrevivência se extinguirá e nos tornaremos apenas um corpo, um agregado organizado
de moléculas, que se dispersarão pelo ambiente como poeira lançada ao vento. Nos
tornaremos então uma lembrança; é o que restará de nossa existência: informações
guardadas na memória de alguém, uma fotografia, um vídeo ou, quem sabe, uma estátua,
um arquivo, um holograma, até. Após mais algum tempo, mesmo essa lembrança
certamente desaparecerá: como um castelo de cartas, como um castelo de areia ou como
um de castelo de pedra; mas, certamente, após um tempo menor ou maior, finalmente
desaparecemos: quando as pessoas que lembravam de nós não lembrarem mais,
deixaremos de ser uma lembrança e desapareceremos para sempre deste mundo. Desse
momento em diante, tudo ocorrerá como se não tivéssemos existido.
Desapareceremos, é certo. Porém, a partir do nosso objetivo de “mais que sobreviver”, se
realizarmos algo que permaneça além da nossa sobrevivência, uma realização física ou
conceitual, nossa existência continuará se manifestando; continuaremos sendo lembrados
e assim, de alguma forma, continuaremos existindo. Transformamos, assim, o desejo de
“mais que sobreviver” no desejo e na possibilidade de “continuar existindo” através da
realização de algo duradouro.
Um filho lembrará dos pais, enquanto ele viver; um neto se lembrará mais um pouco dos
avós; embora para os bisnetos e tataranetos, os bisavôs e tataravôs geralmente sejam
apenas parte de alguma história contada raramente. Assim, se uma das realizações é
fazer existirem filhos e, quem sabe, netos, nós não desaparecemos como um castelo de
cartas. Nos tornaremos uma lembrança nas suas cabeças, eles podem olhar nossas
fotografias e contar estórias sobre nós. Mas, além disto, a própria existência de filhos e
netos significa a continuidade da nossa. E assim existiremos, de alguma forma, por mais
algum tempo, até desaparecermos como algum tipo de castelo, talvez de areia.
O desejo de não desaparecer (ou de prolongar ao máximo os efeitos de sua existência)
poderia explicar porquê é tão comum o desejo de fazer existir um filho? Ainda, poderia
explicar que este desejo seja bem mais intenso que o desejo de adotar uma criança como
filho? E poderia explicar ainda que o desejo de clonar a si próprio possa ser ainda mais
intenso (não mais freqüente e sim, quando presente, mais intenso)?
E se realizarmos algo físico mais duradouro, como criar uma empresa de bases muito
sólidas, ou conhecimento que possibilite efeitos físicos, podemos existir de alguma forma,
por muito mais tempo, até desaparecermos como algum tipo de castelo, talvez de pedra.
Enfim, o desejo de “continuar existindo de alguma forma” corresponderia a uma
acentuação do desejo de “mais que sobreviver”? E poderia motivar seres humanos a
terem filhos ou a realizarem algo com efeitos físicos duradouros, como uma empresa, ou
como o conhecimento?
Cada pirâmide do Egito foi construída para servir a faraós e outros nobres não durante e
sim após sua sobrevivência. Para tal realização, é necessário um grau acentuado de
consciência quanto ao fato de que a sobrevivência terá um fim; no entanto, esse era um
fato óbvio para todos os outros habitantes do Egito, não apenas para os faraós e outros
nobres. Imaginemos, então, a intensidade da motivação necessária para decidir mobilizar
até dezenas de milhares de seres humanos (com a consciência de que centenas ou
milhares deles morreriam durante a construção) e concentrar recursos materiais e
riquezas significativos mesmo para um império. Este seria apenas um dos exemplos mais
evidentes do desejo de continuar existindo, de alguma forma, após encerrar-se a
sobrevivência, transformando-se em motivação e resultando na realização de algo
duradouro.
Já ouvimos ou lemos na biografia de algum cientista relevante uma frase semelhante a
algo assim: “as pessoas passam mas o conhecimento gerado por elas permanece”? Seria
uma maneira refinada de expressar o desejo de continuar existindo, de alguma forma,
através de uma realização, o conhecimento?
Sabemos de alguém que se dedica a construir uma empresa sólida e que se preocupa
particularmente com que ela não desapareça junto como o seu próprio desaparecimento?
Decorreria tal preocupação apenas do desejo de que seus funcionários não percam o
emprego, de que seus clientes continuem sendo atendidos, de que seus fornecedores
continuem tendo para quem vender, de que seus filhos tenham de onde obter sustento?
Ou poderia tal preocupação também decorrer do desejo de continuar existindo, de alguma
forma, por mais algum tempo, de não desaparecer como um castelo de cartas?
Corresponderia a empresa à pirâmide do empresário e o conhecimento, à pirâmide do
cientista?
Podemos fazer essas mesmas perguntas de outra maneira: aceitaríamos de bom grado
que, chegando ao fim da nossa sobrevivência, também chegue ao fim nossa existência?
Aceitaríamos tranqüilamente nos tornar apenas uma lembrança a ser, mais cedo ou mais
tarde, inevitavelmente apagada? Ou preferiríamos admitir a possibilidade de que, mesmo
após encerrada nossa sobrevivência, continue, de alguma forma, nossa existência?
O homem de neandertal, há aproximadamente 200.000 anos, enterrava seus mortos.
Alguns foram achados em posições específicas e com pertences pessoais. Certamente,
imaginava que, de alguma forma a existência poderia continuar, mesmo encerrando-se a
sobrevivência. Observada em praticamente todas as culturas, a memória de
antepassados mortos seria uma maneira de mantê-los existindo, de alguma forma; bem
como significa a esperança de ser mantido existindo pelos descendentes.
Esse mesmo desejo, tão antigo quanto homem de neandertal, tão intenso quanto o dos
faraós, poderia motivar atos do nosso dia-a-dia, como decidir ter filhos, fundar uma
empresa ou participar de organizações beneficentes? Poderia nos servir como motivação,
influenciar nosso comportamento e interferir nos nossos relacionamentos? Seria uma
fonte de motivação freqüente? Se o for, seria intensa? Se o for, porquê o seria? Enfim,
porquê os desejos de “mais que sobreviver” e de “continuar existindo, de alguma forma”
através da realização de algo duradouro, seriam tão presentes e tão intensos? Afinal, o
que motiva o ser humano a se comportar como se comporta? Haveria outras motivações
relevantes do comportamento do ser humano?

sexta-feira, 29 de junho de 2012


Perdoar-se



Carta a um amigo desconhecido, que fugiu da sobrevivência, como um peixe que foge de um aquário para o mar – como se este não fosse também limitado...


Caro amigo,

O meu mais sincero desejo neste momento é que esta carta pudesse te encontrar. Mas sei que te escrevo tarde demais. Como se poderia voltar o tempo, ou anular seus efeitos ou, simplesmente, ignorá-lo?
Como se não sobrevivêssemos e existíssemos contidos no tempo, simultaneamente no intervalo entre dois momentos? Como se não sobrevivêssemos e existíssemos separados pelo espaço, entre dois pontos de uma linha?
O tempo nos unira e o espaço nos separara... Para ti não há mais espaço nem tempo nem outros conceitos. Quanto a mim, ainda não enxergo nem escuto nem raciocino sem eles... Ainda construo castelos de areia. Ainda viajo em busca do sempre mais... Então, que significariam meus atos? Não sei.
Mas sei o que eles podem significar: o mesmo que os teus. Os mesmos que o de qualquer ser que é humanamente. O mesmo e único significado genérico dos atos: aceitar ou não nossa essência, nossas liberdades e restrições comuns. Por isso te escrevo. Para te contar que pensei algo que talvez também te faça pensar...
Ainda ouço os ecos do 'sereis como deuses'... e sei que 'indubitavelmente morri' mas ainda não entendi como... Sei que, perdido, caminhei sobre as marcas de teus pés descalços na areia... Sei que outros caminharam sobre as marcas que eu, perdido, imprimi... Mas ainda não estou sereno quanto ao que preciso e quanto ao que não-preciso entender...
Ainda ouço o eco do “sereis como deuses”... E me perturba lembrar que “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”... “Agora, pois, cuidemos para que ele não estenda sua mão e tome também o fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente”. Esta característica é nosso maior desejo: poder viver eternamente, poder existir de modo absoluto, poder gerar a si próprio. Mas nenhuma de nossas viagens em veleiros sem leme, nenhuma das conchas que coletamos na areia, nenhum de nossos castelos de cartas, de areia ou de pedra, nenhuma de nossas realizações restritas nos trará a única árvore que nos falta: poder gerar a si próprio, “viver eternamente”... com características decididas por nós mesmos, com liberdades não-restritas... Poder viver eternamente não significa viver pra sempre e sim poder viver enquanto nós decidirmos viver. Significa não apenas poder deixar de viver mas também poder deixar de existir, se quisermos. Significa, meu amigo desconhecido, realmente poder a mera ilusão que alguém espera da morte – e, não raramente, alguém abrevia a sua chegada tamanho é o poder dessa ilusão.

 Após reconhecer nossas limitações e nossos mecanismos de sublimação, nos resta algo ainda mas difícil: perdoar-nos.

Nos resta reconhecer que “não-perdoar-nos” significa arrogância, de forma explícita ou pseudo-humilde; e que, perdoar-nos significa aceitar nossas imperfeições existenciais e pessoais. Perdoando-nos, perdoamos aos semelhantes, aceitamos também suas imperfeições, o que significa aceitar a igualdade, significa desistir da diferenciação, desistir dos personagens, desistir dos jogos e da guerra.

Mas, como “perdoar-nos”, sem saber se “erramos” ou “acertamos”? Quando se faz parte de um pelotão de fuzilamento em que apenas uma arma está carregada – e não sabemos qual é – como “perdoar-se”...? Sequer sabemos se matamos ou não...

Mas é exatamente assim que funciona o perdão: não é necessário detalhar as culpas, pois as conhecemos apenas conceitualmente. Ou seja, apenas parcial, relativa e subjetivamente. Se perdoarmos o que reconhecemos como “errado” perdoaremos apenas dentro dos limites dos nossos conceitos de “errado”: ou seja, perdoaremos os “erros” dentro dos mesmos limites em que os cometemos.

Apenas perdoando a si próprio e, consequentemente, aos outros, de forma geral, sem qualquer conceito restritivo, apenas perdoando, a qualquer  pessoa, o que quer que haja para ser perdoado, alivia-se a angústia das culpas. Perdoando-se dessa forma, os “erros” ou “acertos” não importam em si: o perdão os torna (erro e acerto) equivalentes, restando apenas o próprio perdão.

Podemos nos perguntar se o perdão não seria injusto para aquele que “acerta”, ao igualá-lo ao que “erra”. Mas ambos já são existencialmente iguais. O “erro” e o “acerto” os diferencia apenas conceitualmente, porquê “erro” e “acerto” são não mais que conceitos gerados por nós. O perdão apenas reconhece isto, a-conceitualmente: não importando o conceito de “certo” e “errado”.
Não perdoar a si próprio é uma atitude arrogante. Não perdoar-se é não se aceitar como capaz de “errar”: uma atitude explicitamente arrogante. Assim como não admirar os “acertos” próprios é uma atitude pseudo-humilde: porquê os considera ainda pouco, diante de si mesmo, que é capaz de muito mais.
É preciso reconhecer isto antes que nosso tempo finito se encerre. É o que precisamos alcançar antes que a morte nos alcance: reconhecer nossas limitações existenciais e pessoais, supor nossos mecanismos de sublimação e perdoar-nos mesmo sem conhecer a intencionalidade com que agimos – independentemente de quaisquer conceitos sobre ela, admitir como naturais as nossas imperfeições, os nossos limites.
Caso contrário, a trajetória de nosso veleiro sem leme apontará para o sempre mais. Apontará para a busca incessante de se tornar “melhor a cada dia” – a ilusão de que podemos nos tornar diferentes do que somos. Embora possamos pensar de forma diferente e, consequentemente, agir de forma diferente, isso não nos torna diferentes do que somos. Portanto, não torna um ser humano que já “se tornou muito melhor” diferente de um ser humano que ainda apenas pasma-se diante da própria existência.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A menina com o corpo na mão.

A menina esguia e pálida
vaga com um corpo nos braços
por uma rua escura e fria
cheia de porcos assanhados
a menina esguia e pálida
carrega nos braços o próprio corpo
e a menina oferece o próprio corpo
a qualquer porco
que queira se deitar
na solitária esquina deserta
ela faz e aceita qualquer oferta
quando não há mais o que fazer
pra dar de comer
à sua velha mãe e a seu novo filho
noite após noite
a menina pálida
vaga na mesma rua e na mesma esquina
carrega nos braços o mesmo corpo esguio
se deita com os mesmos porcos
seu futuro segue um mesmo trilho
a menina esguia e sem esperança
deus chama de criança
deus chama de filho