Perdoar-se
Carta
a um amigo desconhecido, que fugiu da sobrevivência, como um peixe que foge de
um aquário para o mar – como se este não fosse também limitado...
Caro amigo,
O meu mais sincero desejo neste momento é que esta carta
pudesse te encontrar. Mas sei que te escrevo tarde demais. Como se poderia
voltar o tempo, ou anular seus efeitos ou, simplesmente, ignorá-lo?
Como se não sobrevivêssemos e existíssemos contidos no
tempo, simultaneamente no intervalo entre dois momentos? Como se não
sobrevivêssemos e existíssemos separados pelo espaço, entre dois pontos de uma
linha?
O tempo nos unira e o espaço nos separara... Para ti não
há mais espaço nem tempo nem outros conceitos. Quanto a mim, ainda não enxergo
nem escuto nem raciocino sem eles... Ainda construo castelos de areia. Ainda
viajo em busca do sempre mais... Então, que significariam meus atos? Não sei.
Mas sei o que eles podem significar: o mesmo que os
teus. Os mesmos que o de qualquer ser que é humanamente. O mesmo e único
significado genérico dos atos: aceitar ou não nossa essência, nossas liberdades
e restrições comuns. Por isso te escrevo. Para te contar que pensei algo que
talvez também te faça pensar...
Ainda ouço os ecos do 'sereis como deuses'... e sei que
'indubitavelmente morri' mas ainda não entendi como... Sei que, perdido,
caminhei sobre as marcas de teus pés descalços na areia... Sei que outros
caminharam sobre as marcas que eu, perdido, imprimi... Mas ainda não estou
sereno quanto ao que preciso e quanto ao que não-preciso entender...
Ainda ouço o eco do “sereis como deuses”... E me
perturba lembrar que “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do
bem e do mal”... “Agora, pois, cuidemos para que ele não estenda sua mão e tome
também o fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente”. Esta
característica é nosso maior desejo: poder viver eternamente, poder existir de
modo absoluto, poder gerar a si próprio. Mas nenhuma de nossas viagens em veleiros
sem leme, nenhuma das conchas que coletamos na areia, nenhum de nossos castelos
de cartas, de areia ou de pedra, nenhuma de nossas realizações restritas nos
trará a única árvore que nos falta: poder gerar a si próprio, “viver
eternamente”... com características decididas por nós mesmos, com liberdades
não-restritas... Poder viver eternamente não significa viver pra sempre e sim
poder viver enquanto nós decidirmos viver. Significa não apenas poder deixar de
viver mas também poder deixar de existir, se quisermos. Significa, meu amigo
desconhecido, realmente poder a mera ilusão que alguém espera da morte – e, não
raramente, alguém abrevia a sua chegada tamanho é o poder dessa ilusão.
Após reconhecer nossas limitações e nossos
mecanismos de sublimação, nos resta algo ainda mas difícil: perdoar-nos.
Nos
resta reconhecer que “não-perdoar-nos” significa arrogância, de forma explícita
ou pseudo-humilde; e que, perdoar-nos significa aceitar nossas imperfeições
existenciais e pessoais. Perdoando-nos, perdoamos aos semelhantes, aceitamos
também suas imperfeições, o que significa aceitar a igualdade, significa
desistir da diferenciação, desistir dos personagens, desistir dos jogos e da
guerra.
Mas,
como “perdoar-nos”, sem saber se “erramos” ou “acertamos”? Quando se faz parte
de um pelotão de fuzilamento em que apenas uma arma está carregada – e não
sabemos qual é – como “perdoar-se”...? Sequer sabemos se matamos ou não...
Mas
é exatamente assim que funciona o perdão: não é necessário detalhar as culpas,
pois as conhecemos apenas conceitualmente. Ou seja, apenas parcial, relativa e
subjetivamente. Se perdoarmos o que reconhecemos como “errado” perdoaremos
apenas dentro dos limites dos nossos conceitos de “errado”: ou seja,
perdoaremos os “erros” dentro dos mesmos limites em que os cometemos.
Apenas
perdoando a si próprio e, consequentemente, aos outros, de forma geral, sem
qualquer conceito restritivo, apenas perdoando, a qualquer pessoa, o que quer que haja para ser
perdoado, alivia-se a angústia das culpas. Perdoando-se dessa forma, os “erros”
ou “acertos” não importam em si: o perdão os torna (erro e acerto)
equivalentes, restando apenas o próprio perdão.
Podemos
nos perguntar se o perdão não seria injusto para aquele que “acerta”, ao
igualá-lo ao que “erra”. Mas ambos já são existencialmente iguais. O “erro” e o
“acerto” os diferencia apenas conceitualmente, porquê “erro” e “acerto” são não
mais que conceitos gerados por nós. O perdão apenas reconhece isto,
a-conceitualmente: não importando o conceito de “certo” e “errado”.
Não
perdoar a si próprio é uma atitude arrogante. Não perdoar-se é não se aceitar
como capaz de “errar”: uma atitude explicitamente arrogante. Assim como não
admirar os “acertos” próprios é uma atitude pseudo-humilde: porquê os considera
ainda pouco, diante de si mesmo, que é capaz de muito mais.
É
preciso reconhecer isto antes que nosso tempo finito se encerre. É o que
precisamos alcançar antes que a morte nos alcance: reconhecer nossas limitações
existenciais e pessoais, supor nossos mecanismos de sublimação e perdoar-nos
mesmo sem conhecer a intencionalidade com que agimos – independentemente de
quaisquer conceitos sobre ela, admitir como naturais as nossas imperfeições, os
nossos limites.
Caso contrário,
a trajetória de nosso veleiro sem leme apontará para o sempre mais. Apontará
para a busca incessante de se tornar “melhor a cada dia” – a ilusão de que
podemos nos tornar diferentes do que somos. Embora possamos pensar de forma
diferente e, consequentemente, agir de forma diferente, isso não nos torna
diferentes do que somos. Portanto, não torna um ser humano que já “se tornou
muito melhor” diferente de um ser humano que ainda apenas pasma-se diante da
própria existência.