O capuz
Marcus
Sabry Azar Batista
www.marcussabry.com
Introdução
A
vida de dois personagens se encontra em um momento crítico para
ambos, o momento da execução, em circunstâncias completamente
opostas... um é o condenado a morte, o outro, o carrasco...
Apenas
um mínimo de contato entre ambos, através de buracos de traça no
capuz do condenado... que vê seu carrasco e um resquício de mundo,
em seus últimos momentos...
De repente, tudo ficou
escuro...
* * *
Apenas
alguns buracos de traças me permitiam ver um resquício de mundo. A
cada respiração, o ar aquecido e úmido me sufocava mais um pouco.
E eu sabia que cada passo era um passo a menos. Que cada respiração
me aproximava do fim.
Eu
estava ali para ser morto. Morto por um crime que realmente cometi.
Mas eu não entendia porque tantas outras pessoas estavam ali naquele
mesmo momento. Teríamos algum encontro marcado? Porque tantas
pessoas deixaram de cuidar de suas casas, de suas plantações, de
seu mercado, para ver a vida de alguém sendo extinta?
Haveria
nisso alguma compaixão? Haveria a sensação de imaginar como seria
estar no lugar de um condenado? Haveria apenas uma curiosidade meio
doentia?
Ou
haveria alguma sensação de superioridade, intensa a ponto de
compensar as horas de espera, sob um sol escaldante? Haveria alguma
sensação de superioridade que compensasse a volta pra casa
refletindo sobre as imagens de alguém tremendo sob o impacto de um
projétil, depois caindo, depois ficando imóvel? Haveria alguma
sensação de superioridade que compensasse esta demonstração
orquestrada de violência, algo que justificasse a farsa de um
julgamento, a brutalidade de uma execução?
Alguma
sensação de superioridade que justificasse sacrificar a vida de um
ser humano diante de outros seres humanos? Porque não fazê-lo em
reservado, simplesmente fazê-lo? Porque não fazê-lo do mesmo modo
que eu cometi meu crime, sutilmente, dissimuladamente, só
interessando o resultado, sem testemunhas, apenas vítima e algoz?
* * *
Preparar...
* * *
Poderia
ser o mais comum dos dias; um dia que começou cedo, antes do nascer
completo do sol... um dia que começou cedo, antes que as brumas se
dissipassem totalmente, a névoa parecia querer cobrir o sol para
sempre, como se pudesse impedir o que acontecerá em seguida...
Pudera
eu não precisar estar ali, diante de um pobre diabo que mal entende
o que está acontecendo. Um pobre imbecil que mal consegue respirar
sob um capuz roído por traças. E que logo estará inerte, qual um
saco de areia ou de esterco. E que logo desaparecerá, como poeira
levantada pelo vento.
Malditas
traças, que me permitem ver os seus olhos. Malditas traças que
permitem que ele me olhe enquanto respira.
Malditos
todos esses idiotas que criaram essa farsa, esse teatro de marionetes
sádicas. Malditos vocês, idiotas comuns, que deveriam estar
cuidando de suas vidas ao invés de vir assistir ao espetáculo de
uma vida sendo extinta. Malditos todos, inclusive a mim, por não ter
alternativa a não ser participar dessa possibilidade de medíocres
se sentirem superiores, mesmo que apenas por um momento.
Como
me tornei soldado? Não sei ao certo. Mas que outras opções eu
teria, neste recanto perdido no tempo, dissociado da história?
Como
me tornei carrasco? É praticamente o mesmo que perguntar: por quê
não desertei; por quê não fui embora deste buraco miserável onde
tive o azar de nascer... A resposta é simples: por quê não tenho
nenhuma habilidade além da pontaria. Habilidade tão casual quanto o
meu local de nascimento. A experiência com armas aproximou o
exército de mim; a falta de opções me fez não poder dizer não.
Não
conto mais quantos homens executei; não sei se eram inocentes ou
culpados. Nem se seu crime e sua culpa justificariam seu extermínio.
Nem me interessa saber nem ficar pensando, sem poder chegar a
qualquer conclusão. Sei apenas que eu não tinha alternativa. Como
suas vítimas talvez não tenham tido alternativa; como não tiveram
alternativa melhor para uma manhã de sábado, essas vítimas que
vivem nesse lugarejo esquecido e que vieram assistir outra vítima
ter um destino mais cruel que os delas – talvez tenham vindo por
isso, para que se sintam menos miseráveis, ao menos por uma manhã.
Não
muitas pessoas comuns sobrevivem neste mar de poeira, nesse deserto
de calor e secura, onde o sol e a sede castigam mais que doenças,
onde o trabalho é pesado, o solo de areia é escaldante e as
encostas, íngremes. Um lugar onde o vento, de vez em quando, parece
desesperadamente tentar levar tudo embora...
Poucas
pessoas sobrevivem aqui e se sentem sempre tão miseráveis, que lhes
é necessário se sentir menos miserável de vez em quando. E, assim,
de vez em quando, é necessário que alguem morra de forma cruel para
estes poucos que permanecem se sintam um pouco menos miseráveis.
Poucos
homens, poucas mulheres, poucas crianças e quase nenhum idoso. Mas
em número suficiente para necessitarem se sentir superiores a
alguém. Para necessitarem sacrificar alguém em sua própria
homenagem, como se isso tornasse menos insuportável o seu dia a dia.
Como
se isso os tornasse menos miseráveis que esse pode diabo que ora
consome seus últimos vapores, respirando por meros buracos de traça
abertos em um capuz.
* * *
Benditas
traças, que roeram alguns milímetros do capuz. Mas, por estar
próximo dos meus olhos, os pequenos furos me permitem ver ainda uma
parte significativa da paisagem que muitos considerariam lúgubre –
mas, que, de tão familiar, me parece simplesmente o meu mundo.
Ou,
simplesmente, o mundo, uma vez que não conheço outros – e sei que
mal conseguiria imaginá-los, por nunca ter me afastado daqui mais
que uns poucos dias de viagem. Tentativas de fuga, viagens sem rumo
definido, em que a paisagem sempre se tornava cada vez mais
desértica, cada vez mais quente, mais árida, a cada hora, a cada
dia que passava, até que eu desistia de me afastar...
Até
que eu desistia de tentar mais uma vez me livrar da condenação que
o acaso me impôs. Até que eu desistia de fugir da condenação de
não ter nascido em algum outro lugar qualquer, desde que menos
sufocante do que o único mundo que conheci, o mundo em que passei a
existir e de onde não consegui me afastar.
Benditas
sejam as traças que me permitiram ainda ver um resquício desse
mundo. Benditas as traças que me permitiram respirar um pouco do ar
quente que antes me sufocava, um ar que ainda é melhor que o ar
tóxico que sai da minha respiração ofegante. Um ar quente que
ainda me traz um pouco do cheiro conhecido do meu único mundo.
Um
cheiro forte, mistura de poeira, suor de homens e mulheres, urina e
fezes de animais, sangue de incontáveis sacrifícios aos deuses
eternamente esquecidos, chás de incontáveis ervas sempre fervendo
em algum ponto, fumaça de madeira e de esterco queimando em tantos
lugares ao mesmo tempo que parece tornar impossível sobreviver no ar
puro... os cheiros... os últimos cheiros entram por furos de traças
em um capuz...
E
os sons, os incontáveis sons sutis de mil pessoas no mercado
próximo; os gritos de oferta dos vendedores, a barganha retrucada
dos compradores, o andar apressado das mulheres, o andar displicente
das crianças, a corrida frenética dos ladrões de comida... os
sons... os últimos sons também entram pelos furos que minhas amigas
traças trouxeram para o capuz da minha mortalha.
Buracos
de traça no capuz, que me permitem ver um resquício de mundo, ainda
com seu colorido pálido, mil tons de cinza, algumas cores tímidas,
alguns raros pontos brilhantes... que me permitem ver alguns animais
esguios pastando displicentemente, meninos correndo atrás uns dos
outros, ainda sorrindo simplesmente por estarem vivos, alguns pouco
velhos sentados no chão, outros em pé, apoiados em bastões de
madeira... alguns fumam, outros conversam, outros apenas olham para
o nada...
Vejo
uma mulher parada, com a mão sobre a testa para que o sol não a
ofusque, enquanto observa os últimos momentos de um encapuzado
desconhecido, insignificante, a não ser por representar uma miséria
maior do que a da própria mulher parada sob o sol.
* * *
Buracos
que me permitem ver os olhos de meus carrascos. Olhos que parecem
estar com mais medo que eu. Olhos que se esforçam nas miras dos
fuzis... para não se afastarem mais que alguns milímetros do meu
peito esquerdo... olhos que se esforçam para fugir dos meus... olhos
que parecem olhar para o nada, que parecem tentar não ver o que está
diante deles.
Alguns
dos carrascos desviam o olhar de mim como quem desejaria qualquer
coisa, menos estar ali. Mas, uma vez que estavam e não poderiam
fugir dali, só uma coisa poderia ser tão desejada: que seu fuzil
estivesse carregado apenas de balas de festim, que não fosse deles a
mão que apertaria um gatilho sincero, apenas o gatilho dissimulado,
enganador, mentiroso, falso como aqueles que me julgaram, para quem a
aparência de um tiro é tão importante quanto o tiro real, que o
som, a luz e a fumaça importam tanto para o público quanto a bala
que eles não veem nem escutam.
Outros,
olham fixamente para mim, através da mira e através dos furos no
capuz... olham como se desejassem que seu fuzil estivesse com a bala
verdadeira, real, que explodiria verdadeiramente o peito de um
encapuzado insignificante, anônimo, um qualquer, mais parecido com
um saco de areia ou de estrume. Desejam que sejam eles os que trarão
a todos os que assistem, o prazer de se sentirem menos miseráveis,
por um dia. Mais que isso, desejam que seja deles a chance de tirar
uma vida humana, mesmo que miserável, mesmo que desprezível, mesmo
que seja apenas um fiapo mais parecido com uma imitação de vida do
que com uma vida realmente humana – mas isso não interessa muito,
não mais que a oportunidade de se sentir superior por um dia.
Mesmo
que seja a oportunidade se sentir superior a um pobre diabo
encapuzado, quase nem mais humano, condenado por um crime menor, uma
mera desculpa para um espetáculo mais ridículo que macabro,
triplamente trágico: um culpado por um crime menor ser condenado
apenas para propiciar um espetáculo; um esfarrapado ser executado
enquanto outros miseráveis assistem como se isso os tornasse menos
miseráveis; esfarrapados aproveitarem a oportunidade de matar um
esfarrapado, por motivos muito mais vis que seu crime...
* * *
Apontar...
* * *
Percebo
agora que o capuz não serve a mim. Serve a meus carrascos, que
preferem não me olhar nos olhos. Que preferem não ver minha
expressão de terror. Que preferem não lembrar de mim mais do que o
mínimo necessário, apenas uma farda surrada e um capuz corroído
por traças, mais parecido com um saco cheio de areia ou de estrume
do que com um homem comum, um homem igual a qualquer um, um ser
humano igual aos seus carrascos – igual aos que se esforçam ao
máximo para se sentirem diferentes, mesmo que seja de um pobre diabo
mais parecido com um saco do que com um homem.
O
capuz serve para esconder meu desespero dos meus carrascos; serve
para que meu desespero não acentue o desespero deles, não os faça
desejar estar em meu lugar, como se morrer fosse uma alternativa
razoável para quem apenas sobrevive, como uma semente é ressecada
até quase morrer; mas vai resistindo sem perceber e sem mais esperar
que um dia a chuva fertilize o solo...
* * *
Fogo!
* * *
Vários
fachos de luz explodiram na minha direção. Não terei tempo de
escutar o som do tiro que se dirige a mim. Lembro que um único tiro
se dirige para mim, apesar de vários fuzis apontados. Todos
explodem, apontados para o meu peito. Mas quase todos tem balas de
festim.
Apenas
um tem balas de verdade. Quase todos são falsos. Apenas um é
sincero.
Quase
todos enganam a seus atiradores, para que não se sintam culpados
pelo meu destino. Para que possam chegar em suas casas, depois de
cumprirem seu papel de soldados, e possam almoçar em paz com suas
esposas e seus filhos; para que possam fazer afagos em seus cães e
deitarem-se nas suas camas, para repousar merecidamente; para que
possam tudo isso sem saberem ao certo se hoje mataram ou não
alguém. Para que possam esquecer mais rapidamente essa manhã
inglória. Para que possam dormir a noite toda sem acordar com o
pesadelo de ver uma bala saindo de sua própria boca, sendo soprada a
toda força, como quem sopra uma zarabatana, viajando por alguns
poucos metros até explodir o peito de um encapuzado.
Não
atiram na cabeça, porque é mais difícil acertar. Atiram no peito,
por ser maior e por conter melhor a explosão e o sangramento dentro
de si mesmo, não espalhando pelo chão pedaços dos condenados –
os quais seria trabalhoso recolher; atiram no peito que sangra para
dento, sujando menos o chão de areia já escurecida por tantos
outros sangramentos de tantos outros encapuzados anônimos.
* * *
Durante
uma fração de tempo, tudo desapareceu. Tudo ficou claro, como se o
sol se postasse a minha frente, ofuscando um resquício de mundo.
Depois, vi um risco de luz, apenas. Um risco de luz vindo na direção
do meu peito, como se estivesse me procurando há muito tempo. Como
se estivesse ansioso por finalmente me encontrar. Por finalmente me
libertar de meu ensaio de vida, de meu fiapo de sobrevivência, de
minha quase ausência de desejos além de alguma esperança vaga, que
mal conseguira definir, durante os quase vinte anos em que vaguei por
esse deserto.
Um
risco crescente de luz, que buscava o meu peito, um risco de chumbo
incandescente, que girava frenético, causando uma turbulência na
nuvem de fumaça atrás dele, uma espiral que se espalha,
dissimulando os rostos dos meus carrascos. Imagino que isso lhes
traga um certo alívio, por não ver mais parte do meu olho, por um
mísero buraco de traças.
No
entanto, percebo por um momento ínfimo, que agora se define o que
mais lhes angustia. Agora saberão se de seu fuzil partiu a bala ou
se dele partiu apenas fumaça e ruído. Se dele partiu a verdade ou
apenas encenação; a verdade ou apenas parte de um teatro mesquinho;
se poderão ir satisfeitos ou angustiados para casa; insatisfeitos ou
angustiados – por saberem que extinguiram uma vida humana, ou quase
humana – ou por saberem que não; por terem tido o prazer que
desejavam ou por achar que terão de carregar uma sensação de
culpa; satisfeitos mesmo sem terem mérito e culpados mesmo sem ter
culpa, por um ato que não seria de bravura nem de covardia e sim
apenas uma oportunidade que o acaso lhes concedeu.
O
acaso de ter nascido naquele mundo perdido; o acaso de não ter
conseguido nenhuma ocupação outra, além de soldado em um exército
em farrapos, sem inimigos reais para combater; o acaso de ter sido
escolhido entre não muitos para estar naquela execução, naquela
encenação decidida por alguns poucos, para que não muitos possam
se sentir superiores a um miserável qualquer.
O
acaso de eu ter cometido um crime menor, um crime qualquer, e estar
tão fraco para fugir, ter sido apanhado tão facilmente, em um
momento em que as pessoas estavam precisando de alguma diversão e
não haveria nenhuma melhor do que assistir um ser quase humano
sucumbindo diante de um pelotão de fuzilamento, com suas fardas
esfarrapadas – mas ainda assim, impressionantes para os semi-nus
que assistem.
O
acaso de seres estarem organizados de modo a se admitirem com o
direito de decidir a vida e a morte de alguem; de se admirem como
deuses locais, que decidem sobre si mesmos, se caracterizando como
seres, mas que decidem também sobre outros seres, se caracterizando
como deuses.
O
acaso de poderem estar ali, exercendo essa função mesmo em uma
sociedade tão primitiva e carente... mas que não deixa de ser
composta por humanos, que não deixam de precisar sublimarem a
frustração de se acharem pequenos, vendo alguem ainda menor
sucumbir diante deles.
* * *
O
projétil que me procurava finalmente me encontra. E finalmente
encontro o que sempre procurei. A verdade, trazida por uma explosão
no meu peito. Não sei quem foi o meu carrasco mas tanto faz, pra
mim.
Nesse
momento, ele sabe – pois tiros de festim não produzem um recuo na
arma tão intenso quanto um tiro de verdade...
* * *
A
mim, interessa apenas que tudo ficou escuro. E que depois, tudo ficou
resumido a um resquício de mundo, visível por buracos de traça em
um capuz. E, que depois, tudo ficou claro, ofuscante pela explosão
do tiro. E que, depois, tudo ficou leve, apenas percebi a explosão
do meu peito mas não senti dor, não senti angústia, não senti
culpa, não senti mais nada – além de um alívio, suave como uma
brisa, terno como nada que eu tenha experimentado até então, apenas
um desfalecimento sutil, um adormecer tranquilo, a sensação de
finalmente estar me libertando sem precisar fugir.
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