terça-feira, 21 de maio de 2013


O capuz
























Marcus Sabry Azar Batista
www.marcussabry.com
Introdução


A vida de dois personagens se encontra em um momento crítico para ambos, o momento da execução, em circunstâncias completamente opostas... um é o condenado a morte, o outro, o carrasco...

Apenas um mínimo de contato entre ambos, através de buracos de traça no capuz do condenado... que vê seu carrasco e um resquício de mundo, em seus últimos momentos...


De repente, tudo ficou escuro...


* * *


Apenas alguns buracos de traças me permitiam ver um resquício de mundo. A cada respiração, o ar aquecido e úmido me sufocava mais um pouco. E eu sabia que cada passo era um passo a menos. Que cada respiração me aproximava do fim.

Eu estava ali para ser morto. Morto por um crime que realmente cometi. Mas eu não entendia porque tantas outras pessoas estavam ali naquele mesmo momento. Teríamos algum encontro marcado? Porque tantas pessoas deixaram de cuidar de suas casas, de suas plantações, de seu mercado, para ver a vida de alguém sendo extinta?

Haveria nisso alguma compaixão? Haveria a sensação de imaginar como seria estar no lugar de um condenado? Haveria apenas uma curiosidade meio doentia?
Ou haveria alguma sensação de superioridade, intensa a ponto de compensar as horas de espera, sob um sol escaldante? Haveria alguma sensação de superioridade que compensasse a volta pra casa refletindo sobre as imagens de alguém tremendo sob o impacto de um projétil, depois caindo, depois ficando imóvel? Haveria alguma sensação de superioridade que compensasse esta demonstração orquestrada de violência, algo que justificasse a farsa de um julgamento, a brutalidade de uma execução?

Alguma sensação de superioridade que justificasse sacrificar a vida de um ser humano diante de outros seres humanos? Porque não fazê-lo em reservado, simplesmente fazê-lo? Porque não fazê-lo do mesmo modo que eu cometi meu crime, sutilmente, dissimuladamente, só interessando o resultado, sem testemunhas, apenas vítima e algoz?


* * *


Preparar...


* * *


Poderia ser o mais comum dos dias; um dia que começou cedo, antes do nascer completo do sol... um dia que começou cedo, antes que as brumas se dissipassem totalmente, a névoa parecia querer cobrir o sol para sempre, como se pudesse impedir o que acontecerá em seguida...

Pudera eu não precisar estar ali, diante de um pobre diabo que mal entende o que está acontecendo. Um pobre imbecil que mal consegue respirar sob um capuz roído por traças. E que logo estará inerte, qual um saco de areia ou de esterco. E que logo desaparecerá, como poeira levantada pelo vento.

Malditas traças, que me permitem ver os seus olhos. Malditas traças que permitem que ele me olhe enquanto respira.

Malditos todos esses idiotas que criaram essa farsa, esse teatro de marionetes sádicas. Malditos vocês, idiotas comuns, que deveriam estar cuidando de suas vidas ao invés de vir assistir ao espetáculo de uma vida sendo extinta. Malditos todos, inclusive a mim, por não ter alternativa a não ser participar dessa possibilidade de medíocres se sentirem superiores, mesmo que apenas por um momento.

Como me tornei soldado? Não sei ao certo. Mas que outras opções eu teria, neste recanto perdido no tempo, dissociado da história?
Como me tornei carrasco? É praticamente o mesmo que perguntar: por quê não desertei; por quê não fui embora deste buraco miserável onde tive o azar de nascer... A resposta é simples: por quê não tenho nenhuma habilidade além da pontaria. Habilidade tão casual quanto o meu local de nascimento. A experiência com armas aproximou o exército de mim; a falta de opções me fez não poder dizer não.

Não conto mais quantos homens executei; não sei se eram inocentes ou culpados. Nem se seu crime e sua culpa justificariam seu extermínio. Nem me interessa saber nem ficar pensando, sem poder chegar a qualquer conclusão. Sei apenas que eu não tinha alternativa. Como suas vítimas talvez não tenham tido alternativa; como não tiveram alternativa melhor para uma manhã de sábado, essas vítimas que vivem nesse lugarejo esquecido e que vieram assistir outra vítima ter um destino mais cruel que os delas – talvez tenham vindo por isso, para que se sintam menos miseráveis, ao menos por uma manhã.

Não muitas pessoas comuns sobrevivem neste mar de poeira, nesse deserto de calor e secura, onde o sol e a sede castigam mais que doenças, onde o trabalho é pesado, o solo de areia é escaldante e as encostas, íngremes. Um lugar onde o vento, de vez em quando, parece desesperadamente tentar levar tudo embora...

Poucas pessoas sobrevivem aqui e se sentem sempre tão miseráveis, que lhes é necessário se sentir menos miserável de vez em quando. E, assim, de vez em quando, é necessário que alguem morra de forma cruel para estes poucos que permanecem se sintam um pouco menos miseráveis.

Poucos homens, poucas mulheres, poucas crianças e quase nenhum idoso. Mas em número suficiente para necessitarem se sentir superiores a alguém. Para necessitarem sacrificar alguém em sua própria homenagem, como se isso tornasse menos insuportável o seu dia a dia.

Como se isso os tornasse menos miseráveis que esse pode diabo que ora consome seus últimos vapores, respirando por meros buracos de traça abertos em um capuz.


* * *


Benditas traças, que roeram alguns milímetros do capuz. Mas, por estar próximo dos meus olhos, os pequenos furos me permitem ver ainda uma parte significativa da paisagem que muitos considerariam lúgubre – mas, que, de tão familiar, me parece simplesmente o meu mundo.

Ou, simplesmente, o mundo, uma vez que não conheço outros – e sei que mal conseguiria imaginá-los, por nunca ter me afastado daqui mais que uns poucos dias de viagem. Tentativas de fuga, viagens sem rumo definido, em que a paisagem sempre se tornava cada vez mais desértica, cada vez mais quente, mais árida, a cada hora, a cada dia que passava, até que eu desistia de me afastar...

Até que eu desistia de tentar mais uma vez me livrar da condenação que o acaso me impôs. Até que eu desistia de fugir da condenação de não ter nascido em algum outro lugar qualquer, desde que menos sufocante do que o único mundo que conheci, o mundo em que passei a existir e de onde não consegui me afastar.

Benditas sejam as traças que me permitiram ainda ver um resquício desse mundo. Benditas as traças que me permitiram respirar um pouco do ar quente que antes me sufocava, um ar que ainda é melhor que o ar tóxico que sai da minha respiração ofegante. Um ar quente que ainda me traz um pouco do cheiro conhecido do meu único mundo.

Um cheiro forte, mistura de poeira, suor de homens e mulheres, urina e fezes de animais, sangue de incontáveis sacrifícios aos deuses eternamente esquecidos, chás de incontáveis ervas sempre fervendo em algum ponto, fumaça de madeira e de esterco queimando em tantos lugares ao mesmo tempo que parece tornar impossível sobreviver no ar puro... os cheiros... os últimos cheiros entram por furos de traças em um capuz...

E os sons, os incontáveis sons sutis de mil pessoas no mercado próximo; os gritos de oferta dos vendedores, a barganha retrucada dos compradores, o andar apressado das mulheres, o andar displicente das crianças, a corrida frenética dos ladrões de comida... os sons... os últimos sons também entram pelos furos que minhas amigas traças trouxeram para o capuz da minha mortalha.

Buracos de traça no capuz, que me permitem ver um resquício de mundo, ainda com seu colorido pálido, mil tons de cinza, algumas cores tímidas, alguns raros pontos brilhantes... que me permitem ver alguns animais esguios pastando displicentemente, meninos correndo atrás uns dos outros, ainda sorrindo simplesmente por estarem vivos, alguns pouco velhos sentados no chão, outros em pé, apoiados em bastões de madeira... alguns fumam, outros conversam, outros apenas olham para o nada...

Vejo uma mulher parada, com a mão sobre a testa para que o sol não a ofusque, enquanto observa os últimos momentos de um encapuzado desconhecido, insignificante, a não ser por representar uma miséria maior do que a da própria mulher parada sob o sol.


* * *


Buracos que me permitem ver os olhos de meus carrascos. Olhos que parecem estar com mais medo que eu. Olhos que se esforçam nas miras dos fuzis... para não se afastarem mais que alguns milímetros do meu peito esquerdo... olhos que se esforçam para fugir dos meus... olhos que parecem olhar para o nada, que parecem tentar não ver o que está diante deles.

Alguns dos carrascos desviam o olhar de mim como quem desejaria qualquer coisa, menos estar ali. Mas, uma vez que estavam e não poderiam fugir dali, só uma coisa poderia ser tão desejada: que seu fuzil estivesse carregado apenas de balas de festim, que não fosse deles a mão que apertaria um gatilho sincero, apenas o gatilho dissimulado, enganador, mentiroso, falso como aqueles que me julgaram, para quem a aparência de um tiro é tão importante quanto o tiro real, que o som, a luz e a fumaça importam tanto para o público quanto a bala que eles não veem nem escutam.

Outros, olham fixamente para mim, através da mira e através dos furos no capuz... olham como se desejassem que seu fuzil estivesse com a bala verdadeira, real, que explodiria verdadeiramente o peito de um encapuzado insignificante, anônimo, um qualquer, mais parecido com um saco de areia ou de estrume. Desejam que sejam eles os que trarão a todos os que assistem, o prazer de se sentirem menos miseráveis, por um dia. Mais que isso, desejam que seja deles a chance de tirar uma vida humana, mesmo que miserável, mesmo que desprezível, mesmo que seja apenas um fiapo mais parecido com uma imitação de vida do que com uma vida realmente humana – mas isso não interessa muito, não mais que a oportunidade de se sentir superior por um dia.

Mesmo que seja a oportunidade se sentir superior a um pobre diabo encapuzado, quase nem mais humano, condenado por um crime menor, uma mera desculpa para um espetáculo mais ridículo que macabro, triplamente trágico: um culpado por um crime menor ser condenado apenas para propiciar um espetáculo; um esfarrapado ser executado enquanto outros miseráveis assistem como se isso os tornasse menos miseráveis; esfarrapados aproveitarem a oportunidade de matar um esfarrapado, por motivos muito mais vis que seu crime...


* * *

Apontar...


* * *


Percebo agora que o capuz não serve a mim. Serve a meus carrascos, que preferem não me olhar nos olhos. Que preferem não ver minha expressão de terror. Que preferem não lembrar de mim mais do que o mínimo necessário, apenas uma farda surrada e um capuz corroído por traças, mais parecido com um saco cheio de areia ou de estrume do que com um homem comum, um homem igual a qualquer um, um ser humano igual aos seus carrascos – igual aos que se esforçam ao máximo para se sentirem diferentes, mesmo que seja de um pobre diabo mais parecido com um saco do que com um homem.

O capuz serve para esconder meu desespero dos meus carrascos; serve para que meu desespero não acentue o desespero deles, não os faça desejar estar em meu lugar, como se morrer fosse uma alternativa razoável para quem apenas sobrevive, como uma semente é ressecada até quase morrer; mas vai resistindo sem perceber e sem mais esperar que um dia a chuva fertilize o solo...


* * *


Fogo!


* * *



Vários fachos de luz explodiram na minha direção. Não terei tempo de escutar o som do tiro que se dirige a mim. Lembro que um único tiro se dirige para mim, apesar de vários fuzis apontados. Todos explodem, apontados para o meu peito. Mas quase todos tem balas de festim.

Apenas um tem balas de verdade. Quase todos são falsos. Apenas um é sincero.

Quase todos enganam a seus atiradores, para que não se sintam culpados pelo meu destino. Para que possam chegar em suas casas, depois de cumprirem seu papel de soldados, e possam almoçar em paz com suas esposas e seus filhos; para que possam fazer afagos em seus cães e deitarem-se nas suas camas, para repousar merecidamente; para que possam tudo isso sem saberem ao certo se hoje mataram ou não alguém. Para que possam esquecer mais rapidamente essa manhã inglória. Para que possam dormir a noite toda sem acordar com o pesadelo de ver uma bala saindo de sua própria boca, sendo soprada a toda força, como quem sopra uma zarabatana, viajando por alguns poucos metros até explodir o peito de um encapuzado.

Não atiram na cabeça, porque é mais difícil acertar. Atiram no peito, por ser maior e por conter melhor a explosão e o sangramento dentro de si mesmo, não espalhando pelo chão pedaços dos condenados – os quais seria trabalhoso recolher; atiram no peito que sangra para dento, sujando menos o chão de areia já escurecida por tantos outros sangramentos de tantos outros encapuzados anônimos.


* * *


Durante uma fração de tempo, tudo desapareceu. Tudo ficou claro, como se o sol se postasse a minha frente, ofuscando um resquício de mundo. Depois, vi um risco de luz, apenas. Um risco de luz vindo na direção do meu peito, como se estivesse me procurando há muito tempo. Como se estivesse ansioso por finalmente me encontrar. Por finalmente me libertar de meu ensaio de vida, de meu fiapo de sobrevivência, de minha quase ausência de desejos além de alguma esperança vaga, que mal conseguira definir, durante os quase vinte anos em que vaguei por esse deserto.

Um risco crescente de luz, que buscava o meu peito, um risco de chumbo incandescente, que girava frenético, causando uma turbulência na nuvem de fumaça atrás dele, uma espiral que se espalha, dissimulando os rostos dos meus carrascos. Imagino que isso lhes traga um certo alívio, por não ver mais parte do meu olho, por um mísero buraco de traças.

No entanto, percebo por um momento ínfimo, que agora se define o que mais lhes angustia. Agora saberão se de seu fuzil partiu a bala ou se dele partiu apenas fumaça e ruído. Se dele partiu a verdade ou apenas encenação; a verdade ou apenas parte de um teatro mesquinho; se poderão ir satisfeitos ou angustiados para casa; insatisfeitos ou angustiados – por saberem que extinguiram uma vida humana, ou quase humana – ou por saberem que não; por terem tido o prazer que desejavam ou por achar que terão de carregar uma sensação de culpa; satisfeitos mesmo sem terem mérito e culpados mesmo sem ter culpa, por um ato que não seria de bravura nem de covardia e sim apenas uma oportunidade que o acaso lhes concedeu.

O acaso de ter nascido naquele mundo perdido; o acaso de não ter conseguido nenhuma ocupação outra, além de soldado em um exército em farrapos, sem inimigos reais para combater; o acaso de ter sido escolhido entre não muitos para estar naquela execução, naquela encenação decidida por alguns poucos, para que não muitos possam se sentir superiores a um miserável qualquer.

O acaso de eu ter cometido um crime menor, um crime qualquer, e estar tão fraco para fugir, ter sido apanhado tão facilmente, em um momento em que as pessoas estavam precisando de alguma diversão e não haveria nenhuma melhor do que assistir um ser quase humano sucumbindo diante de um pelotão de fuzilamento, com suas fardas esfarrapadas – mas ainda assim, impressionantes para os semi-nus que assistem.

O acaso de seres estarem organizados de modo a se admitirem com o direito de decidir a vida e a morte de alguem; de se admirem como deuses locais, que decidem sobre si mesmos, se caracterizando como seres, mas que decidem também sobre outros seres, se caracterizando como deuses.

O acaso de poderem estar ali, exercendo essa função mesmo em uma sociedade tão primitiva e carente... mas que não deixa de ser composta por humanos, que não deixam de precisar sublimarem a frustração de se acharem pequenos, vendo alguem ainda menor sucumbir diante deles.


* * *


O projétil que me procurava finalmente me encontra. E finalmente encontro o que sempre procurei. A verdade, trazida por uma explosão no meu peito. Não sei quem foi o meu carrasco mas tanto faz, pra mim.

Nesse momento, ele sabe – pois tiros de festim não produzem um recuo na arma tão intenso quanto um tiro de verdade...


* * *


A mim, interessa apenas que tudo ficou escuro. E que depois, tudo ficou resumido a um resquício de mundo, visível por buracos de traça em um capuz. E, que depois, tudo ficou claro, ofuscante pela explosão do tiro. E que, depois, tudo ficou leve, apenas percebi a explosão do meu peito mas não senti dor, não senti angústia, não senti culpa, não senti mais nada – além de um alívio, suave como uma brisa, terno como nada que eu tenha experimentado até então, apenas um desfalecimento sutil, um adormecer tranquilo, a sensação de finalmente estar me libertando sem precisar fugir.

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